terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Infiel


Ele senta próximo da janela e abre o livro, enquanto a atendente se aproxima para anotar o pedido. “Um café, por favor!” e continua a ler... “Melhor, moça!” Levanta a mão e acena para a menina que ia em direção ao balcão. “Quero uma cerveja...” Mais aliviado de sua decisão, olha despreocupadamente pela janela. Não chovia mais e o que restava de sol se esforçava por esquentar o fim de tarde, secando o asfalto, que continuava úmido. 

As pessoas andavam para lá e para cá com seus guarda-chuvas fechados, pareciam calmos em uma sexta-feira. Ele reparava que não podia diferenciar as classes sociais pelos guarda-chuvas. Não havia muita diferença entre eles. Alguns se destacavam pelas cores ou acabamentos, mas grande parte não passava de um instrumento para se proteger da chuva, que ricos e pobres utilizavam.
Sem nada para fazer, seus olhos tentavam desenhar o destino das pessoas que caminhavam pela rua. Imaginava aonde iriam ou que fariam aqueles homens e mulheres, num dia que parecia se desperdiçar no tempo. O sol secando a calçada úmida, a calmaria do dia e as conversas despreocupadas nas outras mesas ao seu redor, tudo parecia se esvair. 

Ele volta o olhar para o livro que está a sua frente. O abre e começar a ler, tenta fixar os olhos nas palavras, mas algo parece lhe distrair. Olha o copo vazio e pede mais uma cerveja. A garçonete ia trazendo seu pedido, mas esbarra em uma moça. Cacos de vidro para todo o lado, cerveja e bolo no chão. Tanto a moça como a atendente se desculpavam pelo ocorrido. Ele sorri e acena com a cabeça, como se dissesse para não ter pressa e que não havia nenhum problema. Nada parecia lhe aborrecer na calmaria do dia. 

Enquanto a atendente busca uma vassoura, a moça vai sentar numa mesa à diagonal da dele, atrás de um casal de idosos. Ela é baixinha, tem cabelo curto e preto. Está usando uma minissaia e tênis. Tem um alargador médio nas orelhas. Parecia esperar alguém, pois olhava em volta e em direção da porta parecendo buscar algo. Como não via nada, ela abre a bolsa, tira um livro e começa a ler.

Ele não consegue ver o nome do livro lido pela menina. Logo fica se mexendo em sua mesa, tentando encontrar uma maneira de ver. Isso causa certa estranheza nas pessoas ao seu redor. Percebendo a situação constrangedora ele desiste de mirar a moça e o livro. “Nada mais clichê que eu e ela começarmos alguma coisa no dia de hoje”. Para ele o dia, o bar, as pessoas e ela ter derrubado a bandeja, parecia uma situação tão cinematográfica. 

Ele suspira profundamente, olha pela janela e volta para o livro. Não presta mais atenção em nada, somente na história que estava lendo, era como se ao redor dele nada existisse. 

Em determinada página ele lê determinada frase que lhe obriga a refletir mais sobre o seu significado. O relógio marca 21h. “Preciso ir para casa”, pensa. Levanta e caminha em direção ao caixa. Coloca o livro sobre o balcão, enquanto tira a carteira do bolso, totalmente disperso. 

- “Que livro está lendo?” – pergunta uma voz que vem da sua direita. 

- “A queda, de Albert Camus...”

Diz ele ao se vira e perceber que quem fazia a pergunta era a menina que ele olhava antes. 

-“ hum, não gosto muito dele. “

- “Mas por quê...?”

Por coincidência os dois caminham na mesma direção e assim vão conversando. O chão não estava mais tão úmido e a noite estava estrelada, com as nuvens indo embora. O clima estava agradável, assim como a conversa, apesar de eles não concordarem com nada sobre literatura, música, cinema e política. As divergências não eram coisas profundas, mas eram opiniões fundamentadas, que lhe faziam pensar. Os dois, mesmo se cansando de tantos questionamentos e brigas, sentiam necessidade de se ver, dia após dia. 

O dia que ela havia ido ao bar foi para ter uma entrevista de emprego, pois necessitavam de uma nova gerente. Assim, ele sempre ia lá, às sextas-feiras e após o expediente dela, os dois saiam para conversar, discutir e beber. 

Tudo parecia intenso para eles. Ouviam músicas, viam filmes, liam livros e quase sempre discutiam. Uma vez saíram com alguns amigos e eles ficaram impressionados com a quantidade de opiniões que eles tinham sobre a opinião do outro. Bastava Nilo dizer que o melhor filme de Allen era Match Point, que Carolina dizia que o filme era o que menos parecia com o diretor e assim uma longa discussão se estendia. 

As discussões para eles eram algo divertido, eles riam muito, sempre depois de cada conclusão ou de nenhuma ideia. Era raro ficarem mal com isso, mesmo as discussões parecendo muito agressivas. 

As horas que passavam juntos eram poucas, afinal o trabalho no jornal, como o trabalho no bar ocupava a maior parte do tempo dos dois. Mas essas poucas horas eram consumidas com os mais intensos sentimentos e desejos. 

Certo dia, Carolina pensava sobre o relacionamento dos dois. Para ela, pareceu tudo muito clichê: a conversa, o dia e a garoa que caia enquanto ela pensava nisso, no meio do trabalho. A relação dos dois estava parecendo um romance, daqueles, mais chatos. Não que ela tivesse entediada, nem achasse tudo chato, mas faltava alguma coisa... 

Tudo parecia tão atropelado, desordenado, mas tão correto. As coisas pareciam impossíveis, mas davam certo, se encaixavam. Ela jamais imaginaria que ele aceitasse um relacionamento aberto, mas ele aceitou. Os dois raramente comentavam os casos que tinham. Ela preferia não saber quem, quando ou onde ficava – assim, parecendo uma mistura de novela mexicana com algo francês, seguia a relação dos dois. Até que um dia...

Ela havia ido ao lado norte da cidade, queria ir a uma livraria que havia sido inaugurada há pouco tempo, em que havia um café, mas ao chegar lá, ela é surpreendida com uma cena inusitada. Enquanto esperava a moça lhe trazer um livro, ela viu Nilo sentar com uma menina numa mesa distante, ele não podia vê-la, mas ela o via perfeitamente. A moça era morena, cabelos negros, alta e parecia o estar fazendo sorrir. 

Ele estava incrivelmente alegre, incrivelmente feliz. Falava alto, gesticulava e ria muito. A menina parecia se divertir tanto quanto ele. Até foto eles tiravam. Ela não entendia o porquê, mas algo mexia com ela na cena, não era o fato de estar com outra, pois eles tinham um relacionamento aberto. Também não era o caso de ela ter visto ele, isso já havia ocorrido. Carolina lembrava muito bem disso e até ficou rindo dele depois, pois ficou envergonhado com a situação. Mas então, o que a tocava, o que a machucava? Era o sorriso e a alegria demonstrada por Nilo que a magoava, pois ela pensava ser somente dela.

OBS: esse conto é uma homenagem ao cineasta sueco Ingmar Bergman

João Diego
Joinville, verão de 2014


7 comentários:

  1. E eu acho q esse é o único detalhe dos relacionamentos, a pessoa tem que ser única em algo, tanto nos relacionamentos comuns quanto nos abertos, ela tem que se sentir especial e única, pois se não não faz sentido. Curti de mais o texto :D

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  2. bem isso Morgana, merece uma continuação...

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  3. Cara, muuuito bom. Uma leitura que prende a atenção. Fez com que eu me imaginasse sentada em uma mesa do bar observando o desenrolar da história. Parabéns!

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  4. Ótimo conto, concordo que merece uma continuação.

    Eu sou um defensor dos relacionamentos abertos, pela pura liberdade em qualquer área da vida, mas será mesmo que nós aguentaríamos ver quem temos verdadeiro afeto com outro alguém? Será que somos capazes disso ou melhor, evoluídos pra isso? Carolina já tinha presenciado Nilo com outras, mas não tinha o visto tão feliz por estar com outra e me pergunto: conseguiria eu conviver com a pura liberdade em todas as partes da vida como eu mesmo prego?

    Belíssimo texto, João!

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  5. João, adorei a sensibilidade dos detalhes ("Não chovia mais e o que restava de sol se esforçava por esquentar o fim de tarde", lindo). De fato você conseguiu um final realista e dramático (rsrs). Esse sorriso deve ter ficado entalado na garganta dela.

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  6. Meu muito lindo o texto,gostei de mais,a gente nao consegue parar mais de ler que até parece que estamos dentro da história,parabéns Joao fascinante seu texto.

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  7. Achei o conto ótimo. A quantidade de detalhes que você colocou cumpre exatamente seu papel, faz o leitor se ver dentro da história. Minimalista do início ao fim e o desenrolar da história muito bom, sem ser cansativo nem clichê. Ah, parabéns, é claro! (Daniela Stöhr)

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